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Do vácuo político aos novos messias: a pentecostalização do golpe na Bolívia

Atualizado: 16 de nov. de 2019

Por: Breno Botelho

No ápice da crise política nacional, após uma eleição em 20 de Outubro marcada por conflitos e uma forte polarização com a oposição de Carlos Mesa do Centro de Ciudadania (CC), Evo Morales, presidente reeleito em 2019 com 47,07% dos votos, anuncia novas eleições e renuncia ao posto. Acusado pela oposição de fraudar o processo eleitoral, Evo operou sem sucesso nos últimos dias diversas tentativas de pacificação nacional com a convocação da oposição para construção de diálogos conjuntos, e a abertura do processo eleitoral para sindicância por orgãos internacionais.

O cume da renúncia de Evo neste domingo 11 de novembro chegou após a divulgação do resultado de auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA), recomendando novo pleito eleitoral por indício de fraude. Sustentando-se em uma base de apoio popular, do Exército e de boa parte das instituições, Evo buscou nos últimos dias assegurar o resultado das urnas, mas as crescentes manifestações com adesões cada vez maiores de amplos setores da população, que vão dos estudantes às cocaleiras e policiais, com invasão aos meios de comunicação e diversos assassinatos, o caos social se instalou no país. Nos últimos dias, mesmo entre seus aliados, cresciam as dissidências, dentre elas o comando militar.

a novidade na política Boliviana são os movimentos de extrema direita liderados por figuras com Chi Yun Chug, pastor presbiteriano identificado com Bolsonaro, e Luís Fernando Camacho,

Gostaria aqui, contudo, de ressaltar um aspecto da conjuntura político-social pós eleitoral na Bolívia: as expressões de oposição. Ainda que Mesa, ex-presidente, jornalista e dono de TV, tenha se consolidado no segundo lugar no pleito eleitoral com 36,51 % dos votos, a novidade na política Boliviana são os movimentos de extrema direita liderados por figuras com Chi Yun Chug, pastor presbiteriano identificado com Bolsonaro, que ficou em terceiro lugar no pleito, e Luís Fernando Camacho, que aparenta dirigir as ações de violência e atentados a lideranças políticas com incêndios nas casas de diversas figuras aliadas de Evo, incluindo sua irmã, que teve a casa incendiada em Oruro.

Camacho protagonizou neste dia de renúncia a cena mais icônica e representativa da nova oposição, ao entrar no palácio Quemado em La Paz (sede presidencial), sob aparato de segurança, após o alto comando militar recomendar o afastamento do então presidente, para entregar uma carta de renúncia a ser assinada por Evo. Em ato transmitido ao vivo pelas redes sociais do Diário El Deber, jornal da cidade de Santa Cruz de La Sierra, Camacho ajoelhou-se ao chão, e em cima de uma bandeira da Bolívia pôs um exemplar da Bíblia. Santa Cruz de La Sierra é um importante pólo de produção e distribuição de gás para o Brasil, e de forte oposição à Evo. O distrito de Santa Cruz, onde se localiza, é o mais rico do país, respondendo por cerca de 30% do PIB. Também conhecida pelas relações com o Brasil através do agronegócio, e pela polêmica rota do trafico de cocaína.


Camacho no palácio Quemado, ajoelhado diante de uma bíblia sobre a bandeira nacional. Foto divulgada pelo Diário El Deber.

Camacho em visita ao Brasil ao Lado do chanceler Ernesto Araújo e da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP)..Foto publicada nas redes sociais

Em maio deste ano o opositor Camacho veio ao Brasil para encontro com o chanceler Ernesto Araújo, de quem recebeu apoio para denunciar Evo e seu vice, Alvaro Garcia, à OEA. Tanto Camacho quanto Chi despontam na Bolívia como expressão de uma tendência de extrema direita muito similar a exercida no Brasil por Bolsonaro. Agenciando elementos discursivos como a “retórica da perda”, que vem sendo estudada pela socióloga Christina Vital, tal elemento religioso mobilizado por ambos no debate político como forma de os posicionarem como sujeitos portadores de uma missão divina de resgate da sociedade, se mescla e se aproveita do vácuo de novos atores políticos qualificados nos partidos tradicionais, dos dois espectros da política boliviana. Cabe aqui relembrar que Carlos Mesa, segundo do pleito, já foi presidente do país durante pouco mais de 1 ano, ocasião em que foi deposto quando mineiros chegaram a La Paz com granadas, durante período conhecido como “a crise do gás”.

Evo Morales assumiu em seguida, chegando ao poder em 2005 como um divisor da política nacional. Primeiro indígena a presidir o país, que possui uma forte identidade popular com os povos tradicionais, marcada pela plurinacionalidade do Estado boliviano, o país rompia com um ciclo de dirigentes da direita nacional que não foram capazes de resolver problemas sociais graves como a pobreza extrema. A esperança de mudanças políticas e de maior representatividade popular ganhava ecos no cenário do continente marcado, então, pela ascensão de diversos governos de centro esquerda.

Com uma economia fortemente dependente da mineração e agricultura, e a privatização de setores estratégicos, Evo promulgou em 2016 o decreto de nacionalização dos setores de petróleo e gás, mudando a relação com as empresas estrangeiras e abrindo um novo campo de recursos estatais. Como resultado das mudanças de posicionamentos político e econômico levadas a cabo em sua gestão, a extrema pobreza, segundo o Banco Mundial, foi reduzida no país entre os anos de 2002 a 2018 de 63,1% para 34,6% da população[1], e o índice de gini (medidor das desigualdades de renda) caiu de 58,5 em 2005, ano de sua primeira eleição, para 44 em 2017[2].

Por lá, no entanto, foram as interferências de Evo para garantir a possibilidade de suas reeleições por tempo indeterminado, validada pelo Supremo do país após ter sido derrotada em referendo popular, que fomentaram a maior ressonância de críticas entre as oposições..

O país vivia uma nova realidade política e social, e as oposições a seu governo eram absolutamente sem expressão. O cenário de estabilidade política do país estava, no entanto, absolutamente atrelado ao do continente. A ascensão de governos de direita como na Argentina e Chile, a eclosão do golpe de Estado no Brasil, o aprofundamento da crise na Venezuela, dentre outros, demarcam um novo cenário que não deixaria a Bolívia de lado. Por lá, no entanto, foram as interferências de Evo para garantir a possibilidade de suas reeleições por tempo indeterminado, validada pelo Supremo do país após ter sido derrotada em referendo popular, que fomentaram a maior ressonância de críticas entre as oposições.

A aparente estabilidade política dos primeiros governos de Evo, tanto quanto os mandatos de Lula no Brasil, marcaram-se, dentre muitos aspectos, por uma apatia e inexpressividade das oposições por um lado, e, por outro, (e aqui também na Argentina de Cristina) a incapacidade destes governos em estimularem e apresentarem novas lideranças. Este caldo gerou, lá como aqui, um vácuo das representações políticas qualificadas que abre um perigoso espaço para figuras de extrema direita que, em nova roupagem no continente, trazem no agenciamento dos elementos religiosos pentecostalizados – respaldados pelo crescimento das vertentes pentecostais nas periferias e regiões carentes do continente – um novo modelo de populismo, o populismo eleitoral cristão.


In loco


Trago a seguir algumas percepções sobre o cenário sócio-político boliviano baseadas na experiência de atravessá-lo em janeiro de 2019, oportunidade em que cruzei o país literalmente de Sul à Norte, de Villazón na fronteira com a Argentina até La Paz, na quase fronteira com o Peru, passando por Uyuni, Potosy e a segunda capital, Sucre. Regiões que despontam agora como pólos dos conflitos dos últimos dias.

Era já muito forte o sentimento anti Evo estampado nos muros e na retórica dos habitantes. Em Sucre, sede do poder judiciário, encontramos um camponês de aparentemente 60 anos em greve de fome contra Evo na praça principal, 25 de mayo. Muitos dos transeuntes paravam para prestar solidariedade, levar garrafas com água e sacos com folhas de coca. A apenas uma rua de distância do local uma banca divulgava estampado no jornal: quatro ex dirigentes do então governo Mesa investigados pela Lava Jato.



Arquivo pessoal do autor

Na estrada entre a fronteira argentina e o deserto de uyuni o asfalto intermitente, quando existe, é muito bom, o motorista no entanto não se demora em nos dizer que os trechos sem asfalto foram comidos pela corrupção. Na saída da rodoviária de Potosí um cartaz gigantesco com a foto de Evo, as bandeiras do Estado plurinacional e da bolívia, e os dizeres exaltando uma Bolívia grande, ao fundo um gigantesco prédio em construção contrasta com todo o entorno de muita pobreza. A cada cidade que passava perguntava as pessoas sobre o que achavam do governo, grande parte queriam mudança, e um curiosa polarização entre as capitais demonstrava o impacto das regionalidades na política nacional.


Arquivo pessoal do autor

Em La Paz, a sede do governo e parlamento, as manifestações pró-Evo eram mais presentes, em Sucre, sede do poder judiciário que lhe garantiu o direito perpétuo à reeleição, o inverso. Sucre e La Paz, duas capitais do país, são também dois pólos da tradicional disputa política nacional. No entanto, quando perguntávamos quem as pessoas queriam no lugar de Evo ninguém sabia ao certo, nem mesmo o senhor em greve de fome. Muitos sugeriram que poderia ser qualquer pessoa do próprio partido de Evo, menos ele, que iria para o quarto mandato e o acusavam de ter “esquecido suas origens, cercado de bajuladores corruptos". Creio, por fim, que esta sensação popular de esgotamento das condições políticas de governabilidade de Evo, atrelada a ausência de uma figura aliada de sucessão ou de oposição forte e qualificada, era, ainda no começo deste ano, um exemplo do vácuo político sob o qual se assentou a atual tragédia, e sob a qual ameaça crescer uma extrema direita pentecostalizada. Cabe-nos a velha lição: na política não existem espaços vazios.



 

*Breno Botelho é mestrando em sociologia pela Universidade Federal Fluminense.

Acesse o lattes do/a autor/a clicando aqui

[1] Disponível em: < https://datos.bancomundial.org/indicador/SI.POV.NAHC?locations=BO> acesso em 10 de novembro de 2019


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