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"Os mestres loucos". Resenha do filme etnográfico de Jean Rouch

Por: Breno Botelho*


Dirigido pelo Francês Jean Rouch, o filme Os mestres Loucos (Les Maîtres Fous) de 1995, retrata elementos importantes de uma cultura em transição, de povos Africanos marcados pelo colonialismo e a dominação cultural da metrópole Britânica. Localizado na região de Accra, capital da Nigéria, na chamada costa do Ouro Africana, o filme de Rouch acompanha uma cerimônia ritual dos haouka, e, através de suas imagens nos transporta para essa realidade complexa e cheia de possibilidades de interpretações que gerou, na época de sua divulgação, diversos conflitos entre Estados colonizadores, os nativos das colônias e o próprio diretor.


Dentre as diversas possibilidades de análises deste material audiovisual e etnográfico, abordarei algumas à luz de uma bibliografia trabalhada durante o curso de ritual e simbolismo, ministrado no IFCS-UFRJ. Superficialmente poderíamos fazer coro ao senso comum e observarmos no filme de Rouch a demonstração pura e simples de um povo “bárbaro”, inserido em uma região e contexto precários, na África. A Antropologia, no entanto, nos faculta ferramentas valiosas de análises e perspectivas das mais diversas matizes para sairmos deste senso comum e vermos razões, lógicas e mecanismos sofisticados naquilo, ou não, que, à priori, nos parecem completamente estranho.

      Uma destas possibilidades é, em princípio, buscar entender conceitualmente um ritual; para Marisa Peirano(2002), o ritual é muito mais instrumento, uma perspectiva, do que um fenômeno concreto. A autora chama atenção para a necessidade de não estipularmos, à priori, o que é o que não é um ritual, pois esta definição está ao encargo dos próprios nativos quanto à identificação do que é e do que não é “único”; “excepcional”; “crítico”; ou “atípico”, estes são, aliás, adjetivos que ajudam a identificar um ritual como sendo apartado do dia a dia, do cotidiano, embora carregue em si elementos fundamentais para a compreensão deste cotidiano, como veremos, também, mais à frente em Turner. Peirano defende, portanto, uma definição etnográfica do ritual.

     Neste ponto, quanto ao filme, nos ajuda a definir a ação ritual dos haouka exatamente uma comparação com seu dia a dia expresso no vídeo, o ritual, portanto, se expressa na excepcionalidade da ação que aqueles sujeitos praticam; seu caráter coletivo, etc. A autora defende ainda que não está em questão da definição do ritual a sua natureza, seja ela religiosa; esportiva; profana; formais; informais etc. pois o que importaria é “que eles tenham uma forma específica (um certo grau de convencionalidade, de redundância, que combinem palavras e outras ações etc.)” (PEIRANO. 2002 pág. 6). Isso nos ajuda a firmar que, contrariamente à noção errônea de que ritual está necessariamente vinculado com a questão religiosa, os haouka demonstram um complexo processo de ritual que mescla elementos da burocracia Britânica com códigos e expressões próprias deles, o fator religioso aqui não é uma questão central, muito embora as religiões expressem em seus interiores diversos rituais.

neste sentido é interessante notar como o corpo possui uma linguagem própria, que se molda as diferentes situações sociais e as contextualiza em sua dramaticidade

 Uma outra dimensão analítica que também encontraremos em Peirano será quanto a perspectiva performativa presente no Ritual, a sequência dos atos e gestos – que facilmente identificamos no ritual retratado por Rouch – onde se mesclam diversos meios de expressão e comunicação, não só na fala, mas no gestual, na corporalidade, etc. Como no carnaval. Isso nos chama à refletir mais detidamente o próprio processo, e dentro deste processo um dos elementos mais marcantes é a corporalidade dos envolvidos no ritual. A corporalidade em si expressa e afirma um momento diferente do cotidiano desta comunidade, neste sentido é interessante notar como o corpo possui uma linguagem própria, que se molda as diferentes situações sociais e as contextualiza em sua dramaticidade. Isto fica muito claro no filme ao percebermos que cada indivíduo, no momento em que incorpora um personagem da burocracia Britânica, reproduz seus gestos e atribuições como em uma representação teatral, não só afirmando que ali não está mais presente aquele indivíduo que empresta seu corpo, mas afirmando uma espécie de personalidade do espírito que o possui, sua função laboral(motorista, comandante, soldado etc) e seus temperamentos, mais ou menos exaltados, etc.


A relação dos objetos no processo é extremamente reveladora, os objetos presentes no ritual revelam muitas das relações e mensagens que aquele ritual busca comunicar, neste sentido, podemos refletir sobre a relação dos haouka e o cachorro sacrificado como uma mensagem de poder, um ato que os diferencia pela ousadia e coragem de todos os demais, tanto os outros “nativos”, quanto dos colonizadores, e, ao expressarem no ritual um poder que os diferencia, que os distingue pela coragem, deixam entrever, de certa forma, algumas das tensões nas relações sociais transcorridas na Nigéria colonial.

     Isso nos chama atenção a um outro importante fator a ser analisado, pois só podemos entender o ritual dentro de sua correlação com o não ritual, ou seja, dentro de que contexto se insere com o cotidiano e, mais importante ainda, que elementos desse cotidiano ele revela, suas tensões e caraterísticas. Neste sentido, é possível recorrer à Turner(2008), quando se refere à drama social nos momentos de irrupção pública do conflito, como identificador de elementos de disputa entre diferentes sujeitos ou grupos sociais; em analogia, poderíamos dizer neste caso que, se bem analisado com o contexto da colonização ao qual estão inseridos os Nigerianos reportados no filme, o processo ritual revela muitas das tensões, até mesmo culturais, deste processo, pois apresenta umareleitura de um ritual da burocracia Britânica expressa nos modos, na corporalidade, nos códigos, símbolos e objetos ressignificados pelos nativos Africanos, o ritual é, portanto, essa instância que dramatiza e intensifica, com sons, cheiros, objetos etc. Determinadas relações problemáticas, como afirma:


“O conflito parece fazer com que aspectos fundamentais da sociedade, normalmente encobertos pelos costumes e hábitos de trato diário, ganhem uma assustadora proeminência […] dramas sociais são, portanto, unidades do processo anarmônico, ou desarmônico, que surgem em situações de conflitos.” (TURNER. 2008, pp.31 e 33)


Outra importante análise facultada por Turner, e que podemos aplicar aqui é quanto a perspectiva do mundo em becoming, em constante construção, não sendo, portanto, possível analisarmos “cultura” ou “sociedade” como algo estático; Rouch destaca que os haouka estão em processo de adaptação não somente com a realidade da colonização, as novas relações de trabalho, a presença de estrangeiros, etc. mas também com suas próprias transformações internas, seja por migrações de povos de terras menos povoadas para grandes centros, como accra, e as tensões culturais acarretadas por este processo, como pelas novas relações de trabalho, sociais, etc. Isto põe os haouka, tanto quanto os colonizadores ingleses e franceses em um movimento de tensões e liminaridades, de que fala VAN GENNEP(1978) que força a ambos uma mudança constante em seus habitus, rituais, cultura, etc. Sobre este aspecto, dirá Turner:


“O mundo social é um ‘mundo in becoming’ e não um ‘mundo em being’ […] e por este motivo estudos da estrutura social per se são irrelevantes. Eles estão equivocados na sua premissa básica, pois não existe ‘ação estática’. É por essa razão que também reluto um pouco em usar – embora acabe por utiliza-los –, os termos ‘comunidade’ ou ‘sociedade’; pois eles são frequentemente encarados como conceitos estáticos.[…] Cada crise pública tem agora o que eu chamo de características liminares, uma vez que se trata de um limiar entre fases relativamente estáveis do processo social, embora não sejam um ‘limem’ sagrado, cercado por tabus e afastados dos centros da vida pública, pelo contrário, ele assume o seu aspecto ameaçador dentro do próprio fórum, e por assim dizer, desafia os representantes da ordem a lidar com ele, não pode ser ignorado ou desprezado.” (2008, pp.20 e 34)


Isso nos possibilita ver neste ritual uma expressão de tensão explícita entre distintos grupos sociais que agora convivem na nova realidade retratada por Roch, distintos colonizadores e distintos colonos estão expostos às transformações inerentes da convivência social imposta pela realidade colonial, e as tenções desse contato podem se manifestar de inúmeras formas; é neste sentido que Marco Antônio (2008) apontará o ritual como uma espécie de contestação sobre na verdade quem seriam os verdadeiros loucos, uma vez que, os haouka personificam figuras, símbolos e instituições da sociedade e burocracia Britânica, podemos nos questionar se, não seriam eles, os colonizadores, os verdadeiros loucos e bárbaros.


 

*Breno Botelho Ribeiro é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/ UFF); licenciado em Ciências Sociais pela UFRJ, membro do corpo editorial da revista científica ensaios e do laboratório de história das experiências religiosas (LHER/UFRJ).



Referência bibliográfica:

VAN GENNEP, Arnoud. 1978 (1909). Os ritos de passagem, (Apresentação de Roberto da Matta). Petrópolis: Vozes, pp. 9-20; 23-51;157-161.

TURNER, Victor. 2009 (1974). Dramas sociais e metáforas rituais. Em Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. RJ: EdUFFF, pp.19-54.

PEIRANO, Mariza. 2003. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Zahar.

GONÇALVES, Marco Antonio. 2008. Filme-ritual e etnografia surrealista: Os mestres loucos de Jean Rouch. Em O real imaginário: etnografia, cinema e surrrealismo em Jean Rouch. RJ: TopBooks, pp.33-93

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